Bebês Reborn: Terapia, Apego ou Apenas Fantasia?
1. Introdução
Os chamados bebês reborn — bonecas hiper-realistas que imitam recém-nascidos em detalhes impressionantes — vêm ganhando crescente notoriedade no Brasil. Inicialmente produzidos como peças de arte e colecionismo, eles passaram a ocupar também espaços terapêuticos e, mais recentemente, a cena pública e jurídica.
Em 2025, o fenômeno dos reborn explodiu nas redes sociais brasileiras, gerando debates intensos sobre seus usos, seus limites e o que eles revelam sobre a sociedade contemporânea. A presença de adultos em filas prioritárias com bonecas, vídeos emocionais com cuidados maternos fictícios e até disputas judiciais envolvendo esses objetos trouxeram à tona discussões sérias — e por vezes mal compreendidas.
Mais do que uma tendência curiosa, o crescimento desse fenômeno levanta questões relevantes sobre saúde mental, vínculos simbólicos, individualidade e políticas públicas. Entender esse cenário exige olhar para além da superfície.
2. O que são bebês reborn?
O termo original reborn dolls (bonecas renascidas, em inglês) surgiu nos Estados Unidos nos anos 1990 para descrever bonecas infantis transformadas manualmente para se parecerem com bebês reais em cada detalhe: das marcas e expressões faciais ao peso e à textura da pele. O movimento começou em comunidades de colecionadores que buscavam dar realismo a bonecas já existentes, criando peças únicas com aparência quase humana.
A produção de um bebê reborn envolve técnicas artesanais minuciosas. A base costuma ser um kit de vinil ou silicone — cabeça, membros e corpo — que passa por pintura em camadas para simular pele com tonalidades, veias e rubores naturais. Os olhos são vítreos ou acrílicos de alta qualidade, os cílios aplicados fio a fio, e os cabelos são implantados com agulha ultrafina, um a um. O interior é preenchido com materiais que simulam o peso de um recém-nascido, como microesferas de vidro ou manta acrílica.
Diferente das bonecas comuns, o bebê reborn é feito para parecer o máximo possível com um recém-nascido — tem peso semelhante ao de um bebê de verdade, precisa ser segurado com cuidado e, em alguns casos, até recebe perfume com cheiro de recém-nascido. Cada boneca é única e pode custar de centenas a milhares de reais, dependendo do grau de realismo e da artista que a produziu.
Com o tempo, o que era um nicho de colecionismo evoluiu para um mercado internacional. Artesãs conhecidas como “reborners” produzem suas peças por encomenda ou para venda em feiras e ateliês virtuais. Hoje, o movimento ultrapassou o hobby e passou a ocupar espaço nas discussões sobre arte, terapia, maternidade simbólica e comportamento social.
3. Usos e funções: além do colecionismo
Embora muitas pessoas comprem bebês reborn por interesse estético ou colecionismo, esses bonecos também vêm sendo utilizados em contextos mais delicados. Em uma casa de repouso no interior da Bahia, por exemplo, um projeto documentado no Congresso Internacional de Envelhecimento Humano de 2023 relatou que o uso de bonecas reborn ajudou a reduzir a agitação e a tristeza entre idosos com demência. O objetivo era oferecer conforto emocional por meio de um vínculo simbólico, com resultados positivos relatados pela equipe da instituição.
Além disso, há situações em que os bebês reborn são usados como apoio emocional em processos de luto — especialmente por mulheres que perderam filhos ou enfrentam a impossibilidade de engravidar. Profissionais da psicologia, como a psicóloga Daniela Bittar, especialista em luto perinatal, reconhecem que, quando esse uso ocorre dentro de um processo terapêutico, o boneco pode funcionar como um recurso simbólico no processo de elaboração da dor.
Há também relatos de uso em cuidados paliativos, para ajudar pessoas em fim de vida a lidar com o medo, a solidão e a perda de autonomia. E, fora do campo terapêutico, os reborn são empregados em treinamentos médicos, cursos de enfermagem, obstetrícia e até em simulações de primeiros socorros, pela semelhança com um recém-nascido real.
Em menor escala, alguns adultos jovens usam os bebês reborn de forma afetiva ou simbólica, como forma de expressar o desejo de maternar ou cuidar, mesmo sem relação com uma experiência real de maternidade. Quando esse uso é consciente, o boneco pode representar uma forma de conforto emocional ou expressão simbólica de afeto. Mas os efeitos desse vínculo emocional variam de pessoa para pessoa — e são discutidos com mais atenção na próxima seção.
4. O impacto emocional e psicológico
O vínculo criado com um bebê reborn pode ir além da admiração estética ou do uso terapêutico. Em alguns casos, a pessoa desenvolve uma relação afetiva intensa com o boneco, oferecendo cuidados e atenção como se estivesse lidando com um bebê real. Para alguns psicólogos, esse tipo de vínculo pode ter um papel positivo em contextos específicos, como no luto ou em momentos de solidão. Mas também levanta atenção quando passa a substituir vínculos humanos ou interfere no convívio social.
A teoria do “objeto transicional”, proposta pelo psicanalista britânico Donald Winnicott na década de 1950, ajuda a compreender esse tipo de vínculo. Em seus estudos sobre o desenvolvimento infantil, Winnicott descreveu objetos que ajudam a criança a lidar com a ausência da mãe — como paninhos ou bonecos — funcionando como uma ponte entre o mundo interno e a realidade. Em alguns contextos, o bebê reborn pode ocupar esse lugar simbólico, oferecendo à pessoa um sentimento de segurança e controle emocional.
No entanto, quando o uso do boneco se transforma em substituto emocional fixo — com apego intenso, interação constante e tratamento como se fosse uma criança viva — há riscos que precisam ser considerados. Psicólogos citados pela Folha e pela BBC Brasil alertam que, nesses casos, o vínculo pode indicar sofrimento psíquico não resolvido, especialmente em pessoas que enfrentam perdas não elaboradas, vivem isoladas ou têm dificuldade em manter relações afetivas reais.
Isso não significa que todo uso afetivo do reborn seja problemático. O boneco pode representar o desejo de maternar, proteger ou se conectar com algo seguro. Mas também pode revelar, em alguns casos, uma tentativa inconsciente de evitar frustrações e inseguranças do mundo real. O impacto psicológico depende da forma como esse vínculo é vivido — e, quando necessário, precisa ser observado com atenção profissional.
5. Reborns na vida pública: o conflito entre esfera privada e direitos sociais
Nos últimos meses, vídeos de adultos com bebês reborn em situações do cotidiano — como filas preferenciais, consultas médicas e passeios em shoppings — viralizaram nas redes sociais e causaram desconforto em parte do público. Em alguns casos, essas pessoas carregam o boneco como se fosse um bebê real, usando carrinhos, bolsas de maternidade e até solicitando atendimento preferencial em serviços de saúde ou comércio.
Embora o uso simbólico do reborn dentro da esfera privada possa representar um vínculo afetivo ou terapêutico legítimo, sua presença em espaços públicos, especialmente quando envolve solicitações de direitos reservados a crianças reais, provoca reações adversas. Há quem veja como uma forma de expressão pessoal, mas também há quem entenda como um exagero que ultrapassa os limites do razoável.
Casos como o de uma mulher que buscou atendimento em um hospital com um bebê reborn no colo, ou de outra que teria solicitado prioridade em uma agência bancária por estar “acompanhada” do boneco, geraram debates intensos. Esses episódios foram noticiados por veículos como o UOL e O Globo, com especialistas questionando até que ponto é aceitável que objetos simbólicos sejam tratados como sujeitos de direitos em ambientes públicos.
Esse tipo de exposição reforça o contraste entre o que é vivido de forma íntima — como um afeto ou uma forma de lidar com a dor — e o que se torna performance social. Quando o vínculo simbólico é transferido para o espaço público sem filtros, surgem questionamentos sobre limites, direitos, e o impacto sobre o coletivo.
6. Legislação e controvérsia jurídica
O crescimento da presença de bebês reborn em espaços públicos e a tentativa de uso de direitos sociais reservados a crianças motivaram reações legislativas no Brasil. Em maio de 2025, o deputado federal Dr. Zacharias Calil (União-GO) apresentou o PL 2320/2025, que propõe sanções administrativas para quem utilizar bonecos como os reborn para obter benefícios destinados a crianças de colo — como prioridade em filas, assentos preferenciais, descontos ou atendimento diferenciado em serviços de saúde. O projeto prevê multas que variam de cinco a vinte salários mínimos.
Na mesma linha, a deputada Rosângela Moro (União-SP) propôs o PL 2323/2025, que trata do acolhimento psicossocial no SUS para pessoas que desenvolvam vínculos afetivos intensos com representações humanas inanimadas, como os bebês reborn. A proposta reconhece que, embora não exista crime ou infração em portar o boneco, alguns casos podem demandar apoio psicológico, especialmente quando há sofrimento ou prejuízo na vida cotidiana.
Alguns casos concretos têm trazido à tona os desafios jurídicos dessa nova realidade. Em Salvador, uma recepcionista buscou licença-maternidade para cuidar de sua boneca reborn, afirmando que mantinha um vínculo afetivo real com o objeto. O pedido foi negado pela empresa, e ela acionou a Justiça do Trabalho, gerando repercussão nacional. Já em Goiânia, um casal enfrentou uma disputa pela “guarda” de um bebê reborn utilizado em um perfil monetizado no Instagram. O caso envolvia não apenas a boneca, mas a divisão de lucros e o acesso à conta com milhares de seguidores, sendo tratado como questão patrimonial e afetiva.
Ainda que pareçam casos isolados, essas situações evidenciam um dilema jurídico emergente: como equilibrar liberdade afetiva individual e o bom funcionamento de políticas públicas pensadas para pessoas reais? Por enquanto, não há jurisprudência consolidada sobre o tema, mas o debate já chegou ao Congresso e pode abrir caminho para regulamentações futuras.
7. Uma crítica social e cultural
O crescimento do interesse por bebês reborn não pode ser explicado apenas como um fenômeno estético ou comercial. Por trás dessas bonecas hiper-realistas, há sinais de questões mais profundas que atravessam a sociedade contemporânea: a solidão crescente, a fragilidade dos vínculos afetivos e a idealização cada vez mais exigente da maternidade.
A socióloga marroquina-israelense Eva Illouz, conhecida por seus estudos sobre amor, consumo e emoções, analisa em obras como O Amor nos Tempos do Capitalismo (2007) e Por Que o Amor Dói (2012) como a afetividade moderna passou a ser moldada por padrões mercadológicos e terapêuticos. Nesse cenário, o bebê reborn pode surgir como uma tentativa de preencher vazios afetivos ou restaurar a sensação de cuidado e pertencimento diante de relações frágeis ou ausentes.
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, radicado na Alemanha, critica em livros como A Sociedade do Cansaço (2010) e A Sociedade da Transparência (2012) o modo como o sujeito contemporâneo vive pressionado a performar felicidade, produtividade e autocontrole. Em um mundo onde até a maternidade é idealizada como projeto de sucesso absoluto, os bebês reborn podem representar uma forma simbólica de acessar essa experiência — sem os riscos, os fracassos ou a imprevisibilidade que acompanham a vida real.
Em outras palavras, o bebê reborn pode ser entendido também como um espelho: não necessariamente de quem o carrega, mas do tipo de sociedade que produz a necessidade desse vínculo. Uma sociedade em que o toque se tornou escasso, a dor é silenciosa e o desejo de pertencimento — mesmo que a algo simbólico — se manifesta de formas inesperadas.
8. Conclusão: entre o respeito e o limite
O fenômeno dos bebês reborn ultrapassa o campo do colecionismo ou da estética. Ele levanta questões legítimas sobre saúde mental, vínculos simbólicos e os limites entre o privado e o público. Embora possa haver usos terapêuticos reais — como no cuidado de idosos com demência ou em processos de luto acompanhados por profissionais —, também é fato que, em muitos casos, o apego a esses bonecos revela uma tentativa de compensar ausências afetivas profundas.
Isso exige atenção, não indulgência. Há uma diferença clara entre o uso clínico monitorado e a fantasia que invade espaços públicos ou começa a disputar direitos reservados a pessoas reais. É nesse ponto que o debate precisa sair da superfície e encarar com seriedade os limites entre empatia e permissividade, entre cuidado psicológico e descontrole emocional.
O uso de bebês reborn como substitutos afetivos pode funcionar, em certos contextos, como um recurso simbólico válido. Mas também pode indicar sofrimento não tratado, fuga da realidade ou distorções de identidade que precisam de acompanhamento clínico — não validação automática.
Diante disso, as perguntas que ficam não são sobre a boneca em si, mas sobre nós, enquanto sociedade: estamos preparados para acolher o sofrimento real sem reforçar fantasias? Sabemos diferenciar liberdade afetiva de uso indevido do espaço público? Até onde vai o respeito às escolhas individuais, e quando ele começa a ferir o princípio de realidade que organiza a vida em comum?
Referências
- Folha de S.Paulo (2025) – Reportagem sobre o uso de bebês reborn no processo de luto e vínculo simbólico. Inclui depoimento da psicóloga Daniela Bittar. [acessar]
- BBC Brasil (2025) – Matéria sobre o impacto emocional dos bebês reborn e a relação com solidão e afeto. [acessar]
- Congresso Internacional de Envelhecimento Humano (2023) – Relato sobre uso de bonecas reborn com idosos em casa de repouso na Bahia. [acessar]
- Assembleia Legislativa do Paraná – Projeto de Lei 329/2025 sobre o uso público de bebês reborn. [acessar]
- Câmara dos Deputados – Projeto de Lei 2323/2025 sobre acolhimento psicossocial e representação simbólica. [acessar]
- Folha de S.Paulo (2025) – Caso real de mulher que solicitou licença-maternidade por vínculo com boneca reborn. [acessar]
- UOL Notícias (2025) – Reportagem sobre disputa de “guarda” de boneca reborn e conflitos com monetização em redes sociais. [acessar]
- Eva Illouz – “Cold Intimacies” (2007) e “Why Love Hurts” (2012), Polity Press – Estudos sobre amor, consumo e sofrimento emocional.
- Byung-Chul Han – “A Sociedade do Cansaço” (2010) e “A Sociedade da Transparência” (2012), Matthes & Seitz – Críticas à cultura do desempenho, transparência e solidão contemporânea.
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