É Crime Não Prestar Socorro em Acidente?
Presenciar um acidente ou situação de risco e não agir pode não ser apenas uma questão de consciência — pode configurar crime. No Brasil, o Código Penal e o Código de Trânsito estabelecem regras claras sobre a omissão de socorro, e impõem penalidades quando o agente tem condições de ajudar, mas escolhe não fazê-lo.
O Que Diz a Lei
A omissão de socorro está prevista no art. 135 do Código Penal:
“Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo, ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública.”
Pena: detenção de 1 a 6 meses, ou multa.
Ou seja: se a pessoa tinha condições seguras de prestar socorro ou de acionar ajuda, e mesmo assim optou pela omissão, poderá responder criminalmente. A lei, porém, não exige heroísmo: a ajuda deve ser prestada apenas se não houver risco para quem presta o auxílio.
Quando a Omissão de Socorro é Crime?
Nem toda inação configura crime. Para que a omissão seja punível, é necessário que:
- A vítima esteja em perigo real, atual e concreto;
- O agente perceba o risco e a condição da vítima;
- O agente possa agir ou acionar ajuda sem risco pessoal significativo.
Quando esses requisitos estão presentes, o silêncio, a fuga ou a indiferença podem ser juridicamente penalizados. Esse dever de agir não decorre de vínculo com a vítima, mas sim de uma obrigação social mínima, imposta por lei.
Omissão de Socorro em Acidentes de Trânsito
O Código de Trânsito Brasileiro também trata do tema, com uma regra específica para motoristas envolvidos em acidentes. O art. 304 do CTB prevê:
“Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato socorro à vítima, podendo fazê-lo, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública.”
Pena: detenção, de 6 meses a 1 ano, ou multa.
Ou seja, se o motorista está envolvido no acidente, o dever de agir é ainda mais evidente. Mesmo que não tenha culpa no acidente, sua omissão pode gerar responsabilidade penal. O simples ato de chamar o SAMU, os Bombeiros ou a Polícia já é suficiente para cumprir esse dever.
Quando a Omissão de Socorro é Absorvida por Outro Crime?
No direito penal, existe o princípio da consunção, segundo o qual um crime menos grave pode ser “absorvido” por outro mais grave, quando ambos fazem parte de um mesmo contexto e um for meio necessário para a prática do outro. No entanto, essa absorção não se aplica automaticamente aos crimes de trânsito.
De forma reiterada, os tribunais brasileiros têm reconhecido que omissão de socorro, lesão corporal culposa e fuga do local do acidente são condutas com bens jurídicos distintos e, por isso, costumam ser apuradas de forma independente, mesmo quando ocorrem no mesmo episódio.
Em julgamento de 8 de outubro de 2024, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) reforçou essa separação, ao afastar a aplicação da consunção entre lesão e omissão de socorro, e aplicar concurso de crimes. A corte entendeu que essas infrações, embora decorrentes do mesmo acidente, não se confundem e exigem responsabilização própria.
Esse mesmo entendimento foi adotado pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), em 16 de julho de 2024, ao manter a condenação de um motorista que causou lesão, deixou de socorrer as vítimas e fugiu do local. A corte destacou que “não ocorre bis in idem, porque cada conduta protege valores distintos” e que “uma não foi meio necessário para a outra”.
Também em 18 de dezembro de 2024, o TJ-SP reafirmou a autonomia dessas infrações, reconhecendo concurso formal entre lesão e omissão, e concurso material com a fuga do local, mantendo as condenações cumulativas.
Essas decisões refletem uma jurisprudência sólida: nos crimes de trânsito, é comum que lesão corporal, omissão de socorro, evasão do local e embriaguez ao volante ocorram de forma simultânea, mas isso não significa que devam ser tratados como um único delito. Salvo em situações muito específicas com conexão lógica e jurídica clara entre os atos, cada infração deve ser analisada separadamente.
Embriaguez ao Volante e Lesão Corporal: Há Absorção?
Outra tentativa comum de defesa é alegar que o crime de embriaguez ao volante (art. 306 do CTB) seria absorvido pelo crime de lesão corporal culposa (art. 303). Contudo, os tribunais também têm rejeitado esse argumento.
Em julgado da 1ª Câmara Criminal do TJ-MG, em 17 de setembro de 2024, o relator afirmou que “as infrações previstas nos artigos 303 e 306 da Lei 9.503/97 tutelam bens jurídicos distintos”, razão pela qual não se aplica a consunção. O motorista embriagado, ao causar um acidente, pode ser responsabilizado pelos dois crimes de forma independente.
Além disso, como destacou o TJ-MS em 7 de fevereiro de 2025, quando a acusação envolve embriaguez e crime contra a vida (como homicídio ou tentativa), a decisão sobre possível absorção é de competência do Tribunal do Júri, e não pode ser definida sumariamente na fase de pronúncia.
O Que Fazer na Prática?
Se você presenciar um acidente ou situação de risco, o mais prudente é acionar imediatamente os serviços de emergência: SAMU (192), Bombeiros (193) ou Polícia (190). Esse gesto, quando feito de forma responsável, já é suficiente para afastar a responsabilidade penal por omissão.
Se houver condições seguras de agir — como sinalizar a via, evitar novos acidentes ou prestar ajuda básica —, esse auxílio pode ser prestado, mas nunca é exigido quando houver risco real ao agente.
Conclusão
A omissão de socorro não é apenas uma falha ética: pode configurar crime. A legislação brasileira exige que qualquer pessoa, diante de uma situação de perigo, tome providências compatíveis com sua segurança. Em especial nos acidentes de trânsito, o dever de agir é ainda mais rigoroso, especialmente quando a pessoa está diretamente envolvida.
Além disso, os tribunais têm reiteradamente reconhecido que lesão corporal, omissão de socorro, fuga do local e embriaguez ao volante são crimes distintos, que podem e devem ser apurados separadamente. A tese da consunção, embora exista, é aplicada com cautela e apenas quando há conexão jurídica clara entre os atos.
Jurisprudência Comentada
- TJ-SP – Ap. Crim. 1500106-23.2020.8.26.0474 – Julgado em 08/10/2024 Afastou consunção entre lesão e omissão. Aplicou concurso material.
- TJ-SC – Ap. Crim. 5012283-97.2023.8.24.0008 – Julgado em 16/07/2024 Rejeitou bis in idem entre lesão, omissão de socorro e fuga. Condenou pelas condutas de forma autônoma.
- TJ-SP – Ap. Crim. 1516966-79.2023.8.26.0576 – Julgado em 18/12/2024 Reconheceu concurso formal e material entre lesão, omissão e evasão.
- TJ-MG – Ap. Crim. 0002736-82.2022.8.13.0680 – Julgado em 17/09/2024 Afirmou que embriaguez ao volante e lesão corporal culposa não se absorvem por consunção.
- TJ-MS – RESE 0007980-95.2018.8.12.0021 – Julgado em 07/02/2025 Declarou que a análise sobre consunção entre embriaguez e crime contra a vida deve ser feita pelo Tribunal do Júri.
- TJ-PA – Ap. Crim. 0807798-91.2020.8.14.0040 – Julgado em 08/04/2025 Negou consunção entre abandono de incapaz, cárcere privado e abandono material, reforçando a autonomia de delitos mesmo no mesmo contexto.
Fontes
- Código Penal Brasileiro – art. 135
- Código de Trânsito Brasileiro – arts. 303, 304, 305 e 306
- Jurisprudências extraídas dos sítios oficiais dos Tribunais e bases públicas de dados (TJ-SP, TJ-SC, TJ-MG, TJ-PA, TJ-MS)
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