Somos Mesmo Seres Racionais? A Filosofia e a Ciência Respondem
1. Introdução – A dúvida que (quase) ninguém se faz
Você já tomou uma decisão impulsiva — como comprar algo caro por impulso, dizer algo no calor da emoção ou aceitar um convite do qual se arrependeu logo depois — e, em seguida, criou uma explicação lógica para si mesmo? “Eu merecia”, “foi um bom investimento”, “era melhor falar logo do que guardar”. Soa familiar?
Esse tipo de situação é mais comum do que parece. No senso comum, é quase natural afirmar que o ser humano é um ser racional. Acreditamos que pensamos, avaliamos e então decidimos. Essa visão atravessa séculos, está presente na filosofia, na educação e até no direito.
Mas e se essa racionalidade for apenas uma parte da história — e talvez nem seja a maior parte?
2. A origem do ideal: razão como essência humana
A ideia de que a racionalidade define o ser humano é uma das mais antigas e influentes da filosofia ocidental. Foi com Aristóteles que surgiu a definição clássica: o homem como zoon logikon — o “animal racional”. Segundo ele, o que nos diferencia dos outros seres vivos é justamente a capacidade de refletir, argumentar e tomar decisões com base na lógica.
Platão, por sua vez, via a razão como a parte mais nobre da alma humana, capaz de guiar os desejos e impulsos. Em sua obra A República, ele divide a alma em três partes: a razão (logistikon), o ânimo (thymoeides) e o desejo (epithymetikon), defendendo que a razão deve governar as demais para que o indivíduo alcance a justiça interior.
Já no diálogo Fedro, Platão usa a famosa metáfora da carruagem: a alma é como uma parelha de cavalos — um obediente e nobre, o outro impulsivo e indisciplinado — sendo guiada por um cocheiro, que representa a razão. Essa imagem expressa o esforço constante da mente racional para dominar as forças internas do desejo e da emoção.
Essa concepção influenciou profundamente o pensamento ocidental. A razão passou a ser vista como o que nos eleva acima dos instintos, a chave da ética, da ciência, da política e da própria civilização.
3. O ataque à razão: paixões, desejos e limitações
Se os filósofos clássicos viam a razão como guia e essência do ser humano, pensadores dos séculos seguintes começaram a questionar esse ideal. Um dos primeiros foi David Hume, filósofo escocês do século XVIII, que propôs uma visão radicalmente diferente da natureza humana.
Em sua obra Tratado da Natureza Humana, publicada em 1739, Hume afirmou que "a razão é, e apenas deve ser, escrava das paixões". Para ele, a razão serve para calcular meios, mas não é capaz de determinar os fins: são os desejos e sentimentos que nos movem à ação.
Segundo essa visão, não agimos racionalmente e depois sentimos; sentimos primeiro e usamos a razão para justificar ou organizar o que já desejamos fazer. Essa inversão marcou uma ruptura importante com a tradição racionalista.
No século XIX, Friedrich Nietzsche levou essa crítica a um novo patamar, com uma abordagem mais radical e provocadora. Em obras como A Gaia Ciência (1882) e Além do Bem e do Mal (1886), ele questiona a centralidade da razão no pensamento ocidental e propõe que o ser humano é movido, antes de tudo, por instintos e forças interiores. A racionalidade, segundo ele, costuma entrar em cena depois — como uma forma de justificar o que já foi decidido por impulsos não racionais.
Embora não estivesse falando em termos científicos, Nietzsche antecipou, sob linguagem filosófica, muitos dos questionamentos que mais tarde seriam aprofundados pela psicologia e pela neurociência.
Assim, a ideia de que somos seres racionais passou a ser vista, por esses autores, não como uma descrição fiel da nossa natureza, mas como um ideal construído — e, talvez, uma ilusão de controle.
4. E a ciência? O que o cérebro realmente faz
Se a filosofia já apontava limites da razão, a ciência contemporânea trouxe dados concretos sobre como tomamos decisões. Um dos marcos dessa virada foi o trabalho do neurocientista Antonio Damasio e de seu colaborador Antoine Bechara, a partir de estudos publicados nos anos 1990. Analisando pacientes com lesões nos lobos frontais — áreas ligadas à emoção — eles observaram que, mesmo com o raciocínio lógico preservado, essas pessoas tomavam decisões ruins no dia a dia. A conclusão foi direta: a emoção é indispensável para decidir bem.
Outro nome fundamental é o psicólogo Daniel Kahneman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2002. Em seu livro Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar (2011), ele descreve dois sistemas mentais: o Sistema 1, rápido, automático e emocional; e o Sistema 2, mais lento e analítico. Segundo seus estudos, decidimos majoritariamente pelo Sistema 1 — o raciocínio entra em cena só quando necessário.
Desde o final dos anos 1980, o neurocientista Joseph LeDoux, da Universidade de Nova York, demonstrou que a amígdala — estrutura cerebral ligada às emoções — pode ser ativada antes mesmo de qualquer pensamento consciente. Em muitas situações, reagimos emocionalmente sem sequer ter tempo de refletir. Isso reforça a ideia de que a emoção não apenas participa das decisões, mas muitas vezes chega antes da razão.
Do ponto de vista da evolução, faz sentido. O cérebro humano foi moldado para agir rápido, economizar energia e garantir a sobrevivência. Refletir nem sempre era uma opção. Nossa racionalidade, portanto, é uma ferramenta útil — mas limitada e acionada com parcimônia.
5. Então... somos irracionais?
Não exatamente. Dizer que o ser humano é irracional seria tão impreciso quanto dizer que é puramente lógico. O que as evidências mostram é que temos capacidade racional, sim — mas ela é limitada, lenta e exigente. Usar a razão com profundidade requer esforço, atenção e tempo, recursos que nem sempre estão disponíveis no cotidiano.
No dia a dia, quem comanda com mais frequência são os automatismos, os impulsos, as emoções e o contexto. Decisões rápidas são tomadas com base em atalhos mentais, experiências anteriores e reações afetivas — e só depois, muitas vezes, são justificadas com argumentos racionais.
A racionalidade não é nossa configuração padrão, mas uma ferramenta de ativação ocasional. Ela entra em ação quando o ambiente exige, quando somos treinados para isso, ou quando fazemos um esforço deliberado para pensar com mais clareza.
Reconhecer esses padrões é o primeiro passo para tomar decisões mais conscientes e menos reativas.
7. Conclusão – Humanos: racionais por aspiração, não por natureza
Ao longo da história, a racionalidade foi tratada como aquilo que nos distingue: o traço que define o humano. A filosofia clássica valorizou a razão como guia da alma. A ciência moderna, porém, mostrou que a realidade é mais complexa.
Somos, sim, capazes de racionalidade — mas ela não é constante, nem automática. Pensar com clareza exige esforço. E, na maior parte do tempo, agimos por impulso, hábito ou emoção. A filosofia já intuía esse conflito interno. A ciência apenas o comprovou com novas ferramentas.
Talvez o desafio contemporâneo não seja tentar eliminar os vieses, emoções ou automatismos — isso seria impossível. O que podemos fazer é aprender a reconhecer nossos próprios limites e usar a razão quando mais importa. Não se trata de pensar mais, mas de pensar melhor.
Referências
- Antonio Damasio – O Erro de Descartes: Emoção, Razão e o Cérebro Humano. Publicado originalmente em 1994.
- Antoine Bechara e colaboradores – Estudo sobre tomada de decisão em pacientes com lesões no cérebro frontal, publicado em 1994 na revista Cognition.
- Daniel Kahneman – Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar. Lançado em 2011.
- Joseph LeDoux – The Emotional Brain, livro publicado em 1996 com base em pesquisas iniciadas no final da década de 1980.
- David Hume – Tratado da Natureza Humana, publicado em 1739.
- Friedrich Nietzsche – Além do Bem e do Mal, publicado em 1886.
- Platão – Diálogos A República e Fedro, textos clássicos sobre razão, alma e desejo.
- Aristóteles – Ética a Nicômaco e Política, obras em que define o ser humano como “animal racional”.
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