A Palavra Mais Versátil do Português (Spoiler: Fazer)
1. Introdução
Algumas palavras possuem tanta flexibilidade que parecem mudar de forma conforme o contexto. Elas não se limitam a um único significado e, com o tempo, passam a ocupar vários espaços na linguagem — da conversa cotidiana às páginas de dicionários e gramáticas.
Entre essas palavras está um verbo simples, curto e presente em quase todas as situações: fazer.
O verbo "fazer" aparece em receitas, contratos, decisões judiciais, letras de música e frases afetivas. Pode significar produzir, provocar, simular, construir, transformar, sentir, agir — e muitos outros sentidos que variam conforme o tempo verbal, o tom e o uso.
Neste artigo, vamos entender por que "fazer" é considerado um dos verbos mais versáteis do português, explorando seus diversos usos e significados em diferentes contextos da língua.
2. O Que Torna uma Palavra Versátil?
Uma palavra é considerada versátil quando pode assumir diferentes significados, dependendo do contexto em que é usada. Esse fenômeno é conhecido como polissemia — a capacidade que uma mesma palavra tem de expressar ideias distintas sem perder sua identidade linguística.
No português, certos verbos são naturalmente mais propensos à polissemia. São os chamados verbos genéricos, como "fazer", "dar", "pôr", "levar" e "tirar". Eles funcionam como coringas linguísticos: adaptam-se a diferentes situações, substituem verbos mais específicos e formam expressões consagradas pelo uso.
Em outras línguas, o mesmo papel é desempenhado por verbos equivalentes. No inglês, por exemplo, "do" e "make" têm usos semelhantes a "fazer", mas com limitações distintas. Enquanto "make" está mais associado à criação de algo e "do" a ações ou tarefas, "fazer" no português consegue cobrir as duas funções — e muitas outras.
3. Quantos Significados “Fazer” Realmente Tem?
Nos principais dicionários da língua portuguesa, o verbo "fazer" aparece com dezenas de significados diferentes. O Dicionário Houaiss registra cerca de 100 acepções, considerando usos literais, figurados, reflexivos, impessoais e idiomáticos. Já o Michaelis e o Aulete listam entre 70 e 90 sentidos distintos, dependendo da organização e do nível de detalhamento.
Esses significados podem ser agrupados em categorias para facilitar a compreensão:
- Ação ou execução: fazer um trabalho, fazer a lição, fazer um gesto.
- Produção ou criação: fazer um bolo, fazer um projeto, fazer uma escultura.
- Causa ou efeito: fazer chorar, fazer barulho, fazer bem.
- Construção ou montagem: fazer um prédio, fazer uma armadilha.
- Tempo decorrido: faz três dias, faz um mês que partiu.
- Simulação ou fingimento: fazer de conta, fazer que não viu.
- Transformação ou mudança: fazer-se de forte, fazer-se respeitado.
A origem da palavra também ajuda a explicar sua flexibilidade. O verbo "fazer" vem do latim facere, que já possuía múltiplos significados: agir, executar, fabricar, causar, tornar-se. Esse campo semântico amplo foi mantido e ampliado no português ao longo dos séculos.
4. Expressões com “Fazer” que Você Usa Sem Perceber
Além dos muitos significados que assume como verbo principal, "fazer" também está presente em diversas locuções verbais e expressões idiomáticas do português. Nessas construções, o verbo ganha sentidos que não podem ser compreendidos literalmente, mas que fazem parte do uso comum da língua.
Veja alguns exemplos de expressões populares com "fazer" e seus significados:
- Fazer sentido: ser lógico ou coerente.
- Fazer falta: ser necessário ou causar ausência sentida.
- Fazer vista grossa: fingir que não viu; ignorar algo propositalmente.
- Fazer de conta: fingir; simular uma situação.
- Fazer hora: passar o tempo sem pressa ou à toa, geralmente esperando algo.
- Fazer por onde: agir de forma a merecer algo; justificar com ações.
- Fazer jus: ter direito a algo; merecer legal ou moralmente.
- Fazer feio: agir mal; causar má impressão.
- Fazer as pazes: reconciliar-se com alguém após um desentendimento.
- Fazer charme: agir com intenção de atrair ou seduzir de forma sutil.
Essas expressões fazem parte do vocabulário cotidiano e mostram como o verbo "fazer" se integra a estruturas fixas da língua, ampliando ainda mais sua presença e versatilidade.
5. Quando “Fazer” Substitui Outros Verbos
O verbo "fazer" também se destaca por sua capacidade de substituir outros verbos mais específicos. Em muitas situações, ele age como um substituto genérico, simplificando a estrutura da frase e, ao mesmo tempo, mantendo o sentido. Isso ocorre em expressões comuns em que "fazer" se associa a um substantivo, formando uma locução verbal que cumpre o papel de um verbo pleno.
Veja alguns exemplos:
- Fazer um café — em vez de preparar um café
- Fazer uma visita — em vez de visitar alguém
- Fazer um favor — em vez de ajudar
- Fazer perguntas — em vez de perguntar
- Fazer uma ligação — em vez de telefonar
- Fazer exercícios — em vez de exercitar-se
Esse uso não é apenas coloquial. Ele aparece tanto na fala informal quanto em textos jornalísticos, acadêmicos e administrativos. A preferência por "fazer" em lugar de verbos mais específicos muitas vezes se dá por praticidade, clareza ou por fazer parte de uma construção consolidada no uso.
Essa flexibilidade contribui para que o verbo esteja presente em diferentes registros da língua, do mais casual ao mais formal, reforçando seu papel como uma das palavras mais versáteis do português.
6. A Função de “Fazer” na Construção do Tempo
Um dos usos mais comuns e característicos do verbo "fazer" é na indicação de tempo decorrido. Nessas construções, ele aparece de forma impessoal, ou seja, sem sujeito definido. Exemplos típicos são:
- Faz dois dias que não chove.
- Faz um mês que nos vimos pela última vez.
- Faz anos que ele saiu do país.
Nesses casos, mesmo quando a referência temporal está no plural — como "dois dias" ou "anos" — o verbo permanece no singular. Isso ocorre porque "fazer", nesse uso, é um verbo impessoal. Verbos impessoais não se flexionam em número, pois não possuem sujeito gramatical. O termo que aparece depois, como "dois dias", é um complemento de tempo, e não o sujeito da oração.
Essa regra gramatical está registrada nas principais gramáticas normativas, como a de Evanildo Bechara e a de Cunha & Cintra. O uso impessoal de "fazer" para indicar tempo é consagrado tanto na norma culta quanto no uso cotidiano, e permanece inalterado mesmo em contextos mais formais.
7. Conclusão: Uma Palavra, Inúmeros Caminhos
Ao longo deste artigo, vimos como o verbo "fazer" se destaca por sua versatilidade gramatical e semântica. Ele pode indicar ação, criação, transformação, tempo decorrido e muito mais. Também está presente em dezenas de expressões fixas da língua, substitui outros verbos em construções econômicas e aparece em registros formais e informais com naturalidade.
Esse alcance amplo não é fruto de acaso. A origem latina do verbo, os séculos de uso constante e sua capacidade de adaptação fizeram de "fazer" uma peça central no vocabulário do português.
Observar como usamos palavras como "fazer" no dia a dia ajuda a perceber a complexidade e a riqueza da nossa língua. Expressões comuns, que passam despercebidas, muitas vezes escondem estruturas sofisticadas, decisões gramaticais e traços culturais que definem o modo como pensamos e nos comunicamos.
8. Referências
- BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 39. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2022.
- CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 5. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2013.
- FERNANDES, Francisco. Dicionário de Verbos e Regimes. 47. ed. São Paulo: Globo, 2009.
- Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
- Michaelis – Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br
- Aulete Digital. Disponível em: https://aulete.com.br/fazer
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