Traumas do Passado: Como Eles Influenciam Seus Relacionamentos
Nem sempre conseguimos ver as marcas que um relacionamento deixou — mas elas continuam lá. Às vezes, se manifestam como medo de se entregar, dificuldade em confiar ou até como uma sensação constante de que algo vai dar errado, mesmo quando tudo parece bem. O nome disso pode ser trauma emocional.
Quando falamos em trauma, muita gente pensa apenas em abusos extremos ou violências explícitas. Mas os estudos mostram que traumas também podem surgir de experiências mais sutis, como rejeição persistente, abandono, negligência emocional, términos dolorosos ou até padrões familiares tóxicos. São feridas que, mesmo silenciosas, moldam a forma como amamos, reagimos e nos conectamos com o outro.
Este artigo mergulha no que a ciência tem descoberto sobre o impacto dos traumas — especialmente os relacionais — na vida adulta. Vamos entender como essas experiências passadas influenciam seus relacionamentos atuais, por que isso acontece e, principalmente, o que é possível fazer para construir laços mais seguros e saudáveis.
O que são traumas emocionais (e como eles se formam)
Trauma psicológico não é apenas aquilo que aconteceu com você — é o que aconteceu dentro de você por causa daquilo. Em outras palavras, o trauma não está no evento em si, mas na forma como ele foi vivido e registrado pelo cérebro.
Um mesmo acontecimento pode deixar uma marca profunda em uma pessoa e ser superado por outra. Isso acontece porque, em situações de dor intensa, desamparo ou medo, o cérebro pode ativar respostas de sobrevivência tão fortes que registram o momento como uma ameaça contínua. Mesmo após o fim do perigo, o corpo continua reagindo como se estivesse preso àquele passado.
Essa ideia é profundamente explorada no livro The Body Keeps the Score (“O corpo guarda as marcas”), do psiquiatra Bessel van der Kolk. Ele mostra, com base em décadas de pesquisas, que traumas emocionais afetam fisicamente o cérebro e o corpo — especialmente áreas ligadas à memória, ao medo e à regulação emocional. A pessoa traumatizada pode se tornar hipervigilante, ansiosa, reativa ou, ao contrário, emocionalmente entorpecida. Tudo isso influencia seus vínculos com os outros.
Os tipos mais comuns de trauma emocional incluem:
- Traumas na infância: abandono, negligência, abuso emocional ou físico, rejeição.
- Relacionamentos abusivos: controle, manipulação, traição, humilhações repetidas.
- Violência: física, sexual, psicológica ou mesmo presenciar situações violentas.
- Perdas significativas: morte, separações repentinas, rejeições profundas.
Essas experiências podem deixar cicatrizes invisíveis que influenciam profundamente a forma como nos relacionamos — com os outros e conosco mesmos.
Os traumas que mais afetam nossos relacionamentos
Alguns tipos de trauma têm impacto direto na forma como construímos vínculos na vida adulta. E isso não é apenas percepção popular — a ciência confirma: experiências como abuso emocional na infância, relacionamentos abusivos ou términos dolorosos podem moldar nossos padrões afetivos por anos ou até décadas.
Um estudo publicado em 2014, Childhood trauma and adult interpersonal problems, investigou 325 pacientes adultos com depressão e ansiedade. Os pesquisadores analisaram como diferentes tipos de abuso infantil (emocional, físico, sexual e negligência) se relacionavam com dificuldades nos relacionamentos atuais. A conclusão foi clara: traumas emocionais na infância estão fortemente ligados a problemas interpessoais na vida adulta. Esses indivíduos demonstravam mais conflitos, desconfiança, insegurança e medo de rejeição.
Outro estudo, de 2021, Romantic Relationships and Childhood Maltreatment, acompanhou casais ao longo do tempo para entender os efeitos do abuso emocional na infância sobre os relacionamentos amorosos. Descobriu-se que pessoas com esse histórico tendem a demonstrar menos empatia, cuidado e objetivos compassivos com o parceiro — o que prejudica a qualidade da relação. Quanto menor a capacidade de apoiar e acolher o outro, menor a satisfação no relacionamento. No entanto, o estudo também mostrou que parceiros compreensivos e emocionalmente disponíveis podem ajudar a amenizar esse impacto.
Já em 2024, o estudo In Love with a Trauma Survivor analisou casais nos quais um dos parceiros havia sofrido abuso na infância. Os pesquisadores identificaram que certos traumas amplificam ou bloqueiam o efeito do carinho e da intimidade no relacionamento. Pessoas com alto histórico de abuso emocional respondiam melhor ao cuidado do parceiro, enquanto aquelas com abuso físico severo tinham mais dificuldade de desenvolver intimidade, mesmo com afeto presente.
Esses traumas, ao não serem elaborados, costumam gerar padrões emocionais que se repetem nos relacionamentos, como:
- Medo de intimidade: dificuldade de se abrir, de confiar ou de se entregar afetivamente.
- Autossabotagem: criar conflitos ou se afastar quando a relação começa a dar certo.
- Apego ansioso ou evitativo: insegurança extrema ou fuga emocional.
- Agressividade ou frieza: como formas de defesa emocional.
- Reações desproporcionais: ativação de gatilhos emocionais ligados a vivências passadas.
Esses padrões muitas vezes não são conscientes — mas eles moldam o modo como amamos, reagimos e nos sentimos dentro de uma relação.
Como isso se manifesta nos relacionamentos atuais
Quando um trauma não é tratado, ele não desaparece — ele se transforma em comportamentos, medos e reações que carregamos sem perceber. Em muitos casos, quem está conosco hoje paga a conta emocional do que outra pessoa causou no passado.
Um exemplo disso vem da psicologia da memória. Um estudo apresentado pela Revista Superinteressante em 2019 mostrou que, diferente do que acontece com a maioria das lembranças negativas, que tendem a enfraquecer com o tempo, os términos amorosos intensos podem reverter esse padrão. As lembranças ruins de relacionamentos antigos se tornam mais vívidas e persistentes do que as boas, fazendo com que o cérebro registre o fim de uma relação como um tipo de trauma. Isso afeta diretamente a forma como encaramos novas conexões: esperamos que a dor se repita.
Outro aspecto importante é o chamado TEPT relacional — quando os sintomas típicos do Transtorno de Estresse Pós-Traumático aparecem como consequência de vivências afetivas traumáticas. Segundo matéria publicada pelo Portal Drauzio Varella em 2023, pessoas que sofreram relacionamentos abusivos ou extremamente dolorosos podem desenvolver:
- Hipervigilância: estado constante de alerta, como se o perigo ainda estivesse presente.
- Evitação emocional: dificuldade em se conectar, demonstrar carinho ou criar vínculos profundos.
- Reações explosivas: raiva desproporcional a pequenas frustrações.
- Isolamento: medo de se envolver ou tendência a fugir da intimidade.
Essas manifestações fazem com que a nova relação sofra interferências do passado. Muitas vezes, o parceiro atual se depara com reações que não fazem sentido no presente, mas que são ecos de experiências anteriores não resolvidas. Uma mensagem não respondida vira abandono, um desacordo vira ameaça, um toque de cuidado vira desconfiança.
Esse fenômeno é reforçado pelas chamadas distorções cognitivas — formas distorcidas de interpretar o que está acontecendo. A pessoa traumatizada pode ver ameaça onde não há, esperar traição mesmo com sinais de afeto, ou se proteger tanto que acaba bloqueando a chance de viver algo saudável. E o mais doloroso: muitas vezes, ela nem percebe que está repetindo velhas defesas em um novo cenário.
Relações familiares traumáticas e herança emocional
Muito do que vivemos nos relacionamentos adultos tem raízes na nossa história familiar. Como aprendemos a amar — ou a nos proteger do amor — está profundamente ligado às primeiras experiências que tivemos com afeto, cuidado, presença (ou ausência) emocional.
Segundo uma análise publicada pela Folha de S.Paulo em 2023, vivências traumáticas na infância, como crescer em um ambiente de conflito constante, negligência emocional, violência doméstica ou instabilidade afetiva, contribuem para a formação de crenças e padrões disfuncionais que carregamos para a vida adulta. É o que os especialistas chamam de herança transgeracional do trauma.
Esse conceito explica como dores não resolvidas de uma geração podem ser inconscientemente transmitidas às seguintes, influenciando como lidamos com emoções, intimidade, limites e até mesmo autoestima. Um pai ausente pode ensinar, sem palavras, que não vale a pena confiar. Uma mãe crítica pode gerar um adulto inseguro que busca aprovação constante. Um lar sem afeto pode criar alguém que se protege do amor antes mesmo de senti-lo.
A forma como fomos amados — ou não fomos — molda nossos referenciais. Se amor, na infância, significava tensão, cobrança ou abandono, é natural que o cérebro adulto associe carinho a perigo. E aí, mesmo desejando vínculos saudáveis, podemos acabar escolhendo relações parecidas com as que conhecemos ou sabotando as que têm chance de ser diferentes.
Essa transmissão emocional silenciosa não é uma sentença. Mas entender de onde vêm certos medos e reações é o primeiro passo para romper o ciclo — e construir uma forma de amar que não repita as dores do passado, mas que permita algo novo florescer.
É possível superar?
Sim. Superar traumas emocionais é possível — embora não seja um processo simples ou imediato. A boa notícia é que o cérebro tem uma capacidade chamada neuroplasticidade: ele pode se reorganizar, criar novos caminhos e aprender a reagir de forma diferente. Com apoio certo e disposição interna, feridas emocionais podem cicatrizar.
Um dos caminhos mais eficazes para isso é a psicoterapia. Abordagens como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), a EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento por Movimentos Oculares) e a Terapia do Esquema têm se mostrado especialmente úteis no tratamento de traumas relacionais. Elas ajudam a reorganizar pensamentos, emoções e comportamentos ligados a experiências passadas.
Estudos recentes mostram também que relações saudáveis podem ter efeito reparador. Pesquisas de 2021 e 2024 apontaram que, quando alguém traumatizado se envolve com um parceiro compassivo, afetuoso e estável, os impactos negativos de traumas anteriores tendem a diminuir. O vínculo seguro ajuda a reprogramar o cérebro, mostrando que é possível viver uma nova história afetiva, diferente daquela registrada no passado.
Outro elemento essencial é a autocompaixão — a capacidade de acolher a si mesmo sem julgamento. Em vez de se culpar por ter medo, dificuldade ou padrões repetitivos, a pessoa aprende a reconhecer suas feridas com empatia e curiosidade. Isso abre espaço para mudanças reais, sem se tornar refém da autocrítica.
Segundo a plataforma Verywell Mind, algumas estratégias práticas para quem vive com traumas emocionais incluem:
- Buscar apoio terapêutico especializado, mesmo que o processo seja desafiador.
- Aprender a reconhecer gatilhos e criar respostas mais conscientes a eles.
- Comunicar com clareza suas emoções nos relacionamentos, sem medo de parecer vulnerável.
- Construir relações com base na segurança, não na intensidade.
- Praticar o perdão interno, entendendo que as reações do passado eram tentativas de proteção.
Traumas podem fazer parte da nossa história, mas não precisam definir nosso destino. Com paciência, suporte e coragem emocional, é possível construir laços mais saudáveis — e viver um amor que não seja a continuação da dor, mas o início da cura.
Sinais de que você pode estar agindo sob efeito de traumas não resolvidos
Muitos comportamentos nos relacionamentos não são aleatórios — são reflexos de histórias antigas que ainda vivem dentro de nós. Às vezes, achamos que estamos apenas “sendo racionais” ou “nos protegendo”, mas na verdade estamos reagindo a dores antigas, não ao presente.
Identificar esses padrões é o primeiro passo para quebrar o ciclo. Abaixo, estão alguns sinais e frases comuns que podem indicar que há traumas emocionais não elaborados interferindo na forma como você ama ou se deixa amar:
- “Não me apego a ninguém”: pode ser um mecanismo de defesa contra a dor de perdas ou rejeições anteriores. Ao evitar o apego, a pessoa tenta se proteger de sofrer novamente.
- “Todo mundo trai”: pode indicar uma generalização baseada em experiências negativas passadas. A desconfiança se torna uma forma de evitar a decepção, mesmo que o parceiro atual não tenha dado motivos.
- “Relacionamento só serve pra sofrer”: uma crença limitante construída a partir de vivências traumáticas. Essa visão impede a construção de vínculos positivos e saudáveis.
- Afastar quando está bom demais: um padrão clássico da autossabotagem. Quando a relação começa a fluir bem, o medo de se machucar novamente faz com que a pessoa crie conflitos ou se distancie, inconscientemente.
Esses sinais não são provas de que algo está “errado” com você. São respostas emocionais de alguém que aprendeu a sobreviver. Mas, uma vez identificados, eles podem ser transformados — com consciência, apoio e disposição para reescrever a própria história afetiva.
Conclusão
Os traumas que carregamos não nos definem — mas, se não os olharmos de frente, eles podem ditar nossas escolhas. Podem nos fazer temer o amor, evitar a intimidade ou repetir padrões que já nos feriram antes. E tudo isso acontece não porque queremos, mas porque nosso corpo e nossa mente aprenderam a se proteger da dor.
Mas é possível mudar. É possível criar relações diferentes daquelas que nos marcaram. Relações com mais clareza, mais segurança, mais verdade. Relações em que o amor não machuca, mas acolhe. Onde o medo dá lugar à confiança. E onde não é preciso se esconder para não se perder.
Quando nos damos a chance de entender nossas feridas, podemos também aprender a curá-las. Não para apagar o passado, mas para escrever um futuro que não seja controlado por ele.
“Você não é o que fizeram com você. Mas é quem escolhe ser a partir disso.”
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